sábado, 14 de dezembro de 2019

Irreverência


Grupos religiosos querem proibir que vá ao ar o programa especial de Natal do “Porta dos Fundos”, que inclui uma sátira de Jesus Cristo e da Sagrada Família. Sátira, frequentemente de símbolos e figuras veneráveis, é o que a turma do “Porta dos Fundos” faz como ninguém na TV brasileira. Quem sabe que vai se sentir ofendido pelo programa mesmo antes de vê-lo pode recorrer à forma mais direta de censura, que é mudar de canal e deixar que quem admira o grupo e sua irreverência se divirta, sem precisar pedir licença para ninguém. Mas quem não quer ver a sátira não quer que ninguém a veja. 
Não precisavam se preocupar. Depois de tudo que passou em vida, Jesus não iria se ofender com a gozação, ele que foi um grande irreverente. A ideia do Cristo como um agitador contra os poderosos do seu tempo, e não apenas os vendilhões expulsos do templo, tem pouco trânsito – para dizer o mínimo – entre os religiosos de hoje. Jesus foi perseguido até a morte, até a crucificação, a irreverência extrema, pelos que ele ameaçava com sua pregação revolucionária. Os grupos que agora protestam contra o que ainda não viram são exemplos da intolerância que envenena o atual debate político e cultural do País, amostras da inegável imbecilização, se é que existe a palavra, que nos ameaça. Não se sabe se o veneno é uma destilação natural do clima que domina o País desde a bolsonarização (se é que existe a palavra), ou é aplicado conscientemente para nos emburrecer.
A coleção de frases infelizes ditas por nomeados para gerir a área cultural só pode significar que o objetivo é esse mesmo, nos tornarem mais irracionais, e perdermos uma guerra para a qual estamos mal-armados. Enfim, como diria o grande irreverente, “Perdoai-os Senhor, eles não sabem o que dizem”. Ou pior, sabem, mas dizem assim mesmo. 
Luiz Fernando Veríssimo(Estadão, 12 de dezembro de 2019)

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

BICHINHO


Francisco Galindo



Fiquei sabendo que existe em Minas um lugar chamado Bichinho. O nome oficial é alguma coisa Veloso, não guardei direito. Ou me permiti esquecer, pois Bichinho já tá bom. Imagina. Vamos passar  lá em Bichinho, bichinha? Dá pra chegar de triciclo, de pé sempre dá. Como será?
            Estradinhas de terra- as coisas não aparecem do céu, saem é nuas do chão. Um gadinho, suponho. Gatos nos arbustos olhando a gente e pedindo desculpas pela timidez. Um laguinho pras nossas momices narcísicas. Casinhas azuis e delicadas. Horizonte bom de espreitar, como quaisquer horizontes de Minas. Bichinho  tá no catálogo e a gente  cata logo cada porçãozinha que tenha e vai adivinhando silêncio e galos. Céu e galhos. Esperando por mim e por ti, bichinha, uma casa com pote vestindo  xadrez. Uma rede do nosso tamanho, apta de gangorra e segredos. Um guia com sotaque, dando pasagem: “vá pra onde der quiser...”
            Vitoriano. Vitoriano Veloso. Esse é o nome engomado de Bichinho. Fica perto de Tiradentes, pelas cintas de São João D’El Rey. Existe Spoiler turístico? Não o faria, até porque não fui lá. Mas como não querer ir num lugar que tem uma “Casa Torta” concebida por Renato e Lu, aberta a brinquedos e cafés, que eu bem me reservo ver peculiar?  Uma casa que resolveu não ser direita. Uma casa retorcida prum duns lados das asas, flexuosa casa de esquerdos.  Casa sinuosa, com toque dos ventos. Casa sem plano, cobiçosa de surpresas.  Casa vesga sem paralelo. Bichinho tem oficinas, tecidos , móveis, decoração, quadros, paisagismos e jardinagem. Há de ser assim, mas quero pensar que tenha oficinas de bolhas de sabão e pés de vento. Ela tem mesmo a Oficina de Agosto, criada pelo artista plástico Antonio Carlos Bech.  Bichinho de verdade é lá urbaninha, enfeitada e polida para arpoar turista. Pra mim e pra ti, não. Ela que inventou de pegar o nome que arranjasse  pra mim, bichinha, precisa ter o tamanho do meu e do teu afeto. Não nos dizemos bichinho e bichinha à toa. Nos chamamos assim só e quando é mesmo pra chamar e  mesmo pra  atender, meio bichinhos que ficamos, num cio que aprecio e tu abrecias.
            Há nomes pra não se atribuir em vão. Valem como mimos de quem a gente não “enjoalheria” nunca. Olha só o Mia Couto. Vem de uma cidadezinha chamada Beira. Não vi, não fui atrás, não deve ser muita  coisa,  comparada às prováveis maravilhas  de Moçambique. E se juntou beleza ou algum bem, perdeu prum redemoinho arrogante que a  ciclonou e deixou de insulto um “e daí?” Beira mais do que é,  chance de poesia se exibindo na borda. Há ousadia e gosto para chamar  cidades de Lucrolândia e gente que aprove . Mas existem, ainda em Minas, Entrefolhas, Luz,  Carbonita, Divino, Maravilhas, Passatempo. Cidades podem receber nomes pela numerologia,  testados por repetiçoes, dados  por cortesia e laurel. Mas quando os nomes  seduzem  no ouvido e ajustam afetos,  queremos  ser apresentados,  só pra ver como é que é.  Também por isso vamos pra Bichinho. Por causa do nome que tem e das coisas que pede que a gente não leve, mas encontre pra arrimar: flanante balãozinho e prece pra São Martinho.
            Por causa do nome, vá por Tiradentes, estique até Prados e mais trinta minutos pela Serra de São josé, enfim chegará a Bichinho, repetindo as caminhadas em busca do ouro. No percurso, algumas ruínas e demolições. Para albergar, armazém, santíssimo resort,  solar da serra ou aroma da montanha. Ou nos iguale,  chegue sem ter ido, bote os pés só de querer, prenda o fôlego e  testemunhe  que alicolá tem  paragem formosa que nem a carícia que nos fazemos só de bem dizer como nos dizemos.