Carnaval terminando, ou nem
tanto. Da mesma forma que o pré-Carnaval começa cada vez mais cedo no Rio de
Janeiro, antecipando-se mesmo ao Natal, o pós-Carnaval ainda se estenderá por
vários finais de semana, enchendo as ruas de alegria e desespero, de fantasia e
sujeira, de travestidos e piriguetes. As fronteiras estão cada vez mais tênues,
e chegará o dia em que desaparecerão de vez: o ano inteiro será um baile de
máscaras, uma mistura confusa de folia e rotina, trabalho e beijo na boca,
samba, suor e cerveja, para o bem e para o mal.
Ainda não li nos jornais a
tradicional reportagem dando conta da prisão de centenas de mijões que
emporcalham as ruas, fazendo de banheiro as árvores, postes, esquinas e
monumentos públicos, mas ela virá, tão certa quanto a Quarta-Feira de Cinzas. O
assunto me vem à cabeça quando, folheando o livro ‘Debret e o Brasil’, de Julio
Bandeira e Pedro Corrêa do Lago, me deparo com uma aquarela de Jean-Baptiste
Debret, reveladora sobre a origem do nosso mau costume de urinar na rua, mas
que também diz muito sobre o presente, sobre quem somos hoje.
Pintada entre 1817 e 1829, a
aquarela mostra um aristocrata português enfatiotado se aliviando numa calçada,
sob a proteção de uma sombrinha empunhada com diligência por um escravo. A
imagem não chega a ser chocante, porque muitos traços daquela sociedade
escravagista se perpetuaram, persistem na nossa linguagem, nos nossos hábitos,
nos nossos valores, talvez no nosso inconsciente (que se assista, por exemplo,
ao filme ‘O som ao redor’, de Kleber Mendonça Filho, que deixa isso tão claro).
Ao contrário, se há algo de chocante na aquarela é o fato de nos reconhecermos
nela com tanta naturalidade. Não vou me estender numa interpretação
sociológica, mas, pela crueldade involuntária, um detalhe pouco evidente me
chama a atenção: na parte inferior da imagem, os pés descalços do escravo têm
algo de animal na tensão com que se esticam, como se o negro, sub-humano,
estivesse a meio caminho entre as patas do cavalo e as botas pesadas do nobre,
representante da civilização e da ordem que aqui se instituíam. Tudo ali
sinaliza que não poderíamos dar certo: poder e mijo, sol e roupas pesadas,
falta de higiene, cooperação entre classes que se odeiam.
Note-se que a indefinição da data
da aquarela também é reveladora: a imagem pode ter sido produzida antes ou
depois da Independência; mas isso importa pouco, porque a ruptura política não
afetou nem os hábitos nem as relações de poder entre as classes sociais. A
própria Independência, aliás, está diretamente associada à fisiologia: li que,
naquele 7 de setembro, o Príncipe parou às margens do Ipiranga para se aliviar,
quando chegou por um mensageiro a carta do Conselho de Estado pedindo
providências em relação a Portugal, seguindo-se o famoso brado. (Dois anos
depois, já na condição de Imperador, D.Pedro I assistia a uma parada de
militares alemães na Fortaleza da Praia Vermelha quando pediu licença, se
agachou e “obrou” junto a um muro; e um daqueles soldados registrou em seu
diário que D.Pedro gostava de urinar do alto de uma a varanda do Palácio de São
Cristóvão sobre as cabeças dos cortesãos).
Xixi na rua é assunto pouco
elegante, o que explica a escassez de pesquisas acadêmicas sobre o mau costume.
Entre os historiadores clássicos, Luiz Edmundo, em “O Rio de Janeiro no tempo
dos vice-reis” citou nobres que interrompiam cortejos para urinar nas ruas,
prática que continuou Império adentro. Entre os contemporâneos, aprendo com
Milton de Mendonça Teixeira que, na época da aquarela de Debret, as ruas do Rio
de Janeiro eram mesmo imundas, e que as casas não tinham banheiros: o “número
um” era recolhido de fossas nos quintais por um escravo, em tonéis de barro, e
despejado na praia ou terreno baldio mais próximo. Já a urina era simplesmente
atirada pelas janelas, dos urinóis, na calçada. Daí uma lei criada no final do
século 18 pelo Marquês de Lavradio, após ser ele próprio vítima desavisada de
um desses arremessos; numa espécie choque de ordem da época, ele decretou:
“Todo sujeito que for arremessar águas servidas pela janela deverá bradar antes
‘Água vai!’”. (Aprendo com meu amigo Deonísio da Silva que a palavra mictório
foi criada pelo Visconde de Taunay a pedido da princesa Isabel, que não gostava
de “mijadouro”: ela mandou construir os primeiros, no centro do Rio.)
Se no cotidiano a desordem já era
a ordem, como mostram os registros de Debret, outra historiadora, Marlene
Soares Pinheiro, relata que o artista francês ficou estarrecido com as cenas
que presenciou durante o Entrudo, o precursor do nosso Carnaval: em cartas
enviadas a Paris e no livro que escreveu mais tarde sobre sua permanência de 15
anos no Brasil, Debret descreveu os “horrores” que viu nas ruas durante os três
dias de festa (o carnaval começava no domingo). Mas desenhos como ‘Cena de
carnaval’, de 1823, que mostra uma negra sendo atacada na rua por um negro de
cartola (fantasiado portanto de “senhor”), também chamam a atenção por outro
motivo. Além de registrar uma prática precursora das troglodices que se veem
hoje nos blocos da cidade, a imagem mostra como os escravos gostavam de emular
as práticas dos senhores. “Vi certo Carnaval em que alguns grupos de negros
mascarados e fantasiados de velhos europeus imitavam-lhes os gestos”, escreveu
o artista.
blog Máquina de Escrever - G1
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