Em 90
quilômetros de estrada não havia um só toque de verde. Era o início dos anos
1970 e eu estava em campanha para deputado federal. Visitávamos Petrolândia, no
interior de Pernambuco. E meu primo Zé Humberto dirigia um Fusquinha azul. O
calor e a falta de vida e de verde nunca me saíram da memória.
A seca é
tema de debates e campanhas há tantos anos. O Dnocs, a Sudene e o Ministério da
Integração se dedicam ao assunto. Sem falar nos estudos e pesquisas de
especialistas e cientistas. E nenhuma solução definitiva.
Tive um
momento de grande esperança no Ceará, quando da reestruturação da Sudene, sob o
comando do presidente Lula e com a presença inesquecível de Celso Furtado, um
dos ícones, senão o maior, do conhecimento e da preocupação com o quadro do
Nordeste brasileiro.
Hoje, leio
sobre a criação de comissões especiais do Congresso com o objetivo de cobrar do
governo medidas especiais de combate à seca e para investigar o atraso nas
obras da transposição do Rio São Francisco e da Transnordestina. Os
parlamentares visitarão os locais afetados para acompanhar as consequências da
seca. Quantas comissões já foram criadas? Câmara dos Deputados, Senado Federal,
Ministério Público? Manchetes
praticamente iguais às de ontem, do ano passado, das décadas passadas. Não
tenho as respostas, mas todos vemos o que os especialistas podem fazer quando
há vontade política e recursos disponíveis.
Israel é um
exemplo muito citado, mas não deixa de ser maravilhoso ver as imagens cheias de
frutos que o deserto israelense produz. E Las Vegas, cidade milionária
incrustada no meio do deserto? E torna maior ainda o golpe das imagens do nosso
sertão, da nossa incompetência em resolver um problema com solução. É
inadmissível que ano após ano o sofrimento se repita.
É mandacaru
e macambira. Vida sem água, resistente e brava, espinhosa e árida. É fato
noticiado todo ano. Do Maranhão ao norte de Minas Gerais. Sebastião Salgado
fotografou os tons marrons e os olhos tristes e famintos de homens e animais. A
arte imortaliza o sofrimento, a resiliência e a força do povo sertanejo.
Artistas de todos os tipos choraram e cantaram, pintaram e contaram. Mas,
novamente, nenhuma solução.
É difícil
resolver algo a partir de pressupostos equivocados. A principal dificuldade que
o País enfrenta está no próprio enunciado, no enfoque de combate à seca. Um
fenômeno climático sistemático não é para ser combatido. Alguém imaginaria
combater o gelo na Sibéria? Deve-se, sim, criar melhores condições de
convivência com ele.
O mais
importante com relação a esse problema é que existem técnicas adaptadas às
condições do Semiárido. O renomado agrônomo cearense Guimarães Duque, por
exemplo, desenvolveu um método para a agricultura de sequeiro que foi objeto de
muitas homenagens, mas pouca ação para colocá-lo em prática.
E também, ao
contrário do que se pensa e se divulga, existe água suficiente no Nordeste. Só
que, pelo modelo econômico do latifúndio e do capitalismo tropical, a água
também é pessimamente distribuída. Concentração de renda, concentração de
terras, concentração do controle das águas, eis os pressupostos da tragédia que
se renova.
Falta não
apenas a vontade política mencionada. É necessária também a permanente
mobilização popular. Enquanto o povo nordestino aceitar passivamente a
perpetuação de práticas assistencialistas e do clientelismo que assume novas
formas, mas mantém sua essência no trato da estiagem, o quadro dantesco se
repetirá. Enquanto a solidariedade pontual e os bálsamos emergenciais
continuarem a prevalecer, nada vai mudar de verdade.
Hoje a
sociedade civil se organiza. Doação de alimentos, água e roupas ajudam. Mas e
amanhã? Amanhã o resto do Brasil volta-se para outra causa e o sertanejo para
sua realidade seca e permanente.
A realidade
descrita por Rachel de Queiroz, no seu romance O Quinze, e por Graciliano
Ramos, em Vidas Secas, espalhando pelo mundo verde as agruras do Sertão e do
seu povo forte e sofrido, vai se eternizando. É verdade que ganha toques de
modernidade. A moto substituiu o jumento. As comitivas de retirantes e de paus
de arara não existem mais.
O sofrimento
toma novas formas. Os prejuízos ganham novos critérios de mensuração. É a seca
com ares de século XXI. Ecoa na consciência nacional, como atestado da
incompetência generalizada, o canto de Luiz Gonzaga composto na década de 1950:
“Seu doutor, uma esmola/para um homem que é são/ou lhe mata de vergonha/ou
vicia o cidadão”.
Os artistas
fizeram e fazem sua parte. Resta ao povo nordestino e aos seus representantes
fazerem ouvir, bem alto, as vozes e os gemidos da seca. Não apenas em tom de
lamento, mas, principalmente, de firme reivindicação.
Fernando
Lyra é ex-ministro da Justiça
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