Fernando Gabeira
Meu
texto sobre a urgência de uma resposta coletiva aos avanços autoritários de
Bolsonaro alcançou muita gente de minha geração.
Felizes
com a ideia, todos se preparam, sabendo que o bastão há muito foi passado para
as novas gerações. Não importa a importância do papel, o que importa é estar
presente.
Da
minha parte, a situação é clara. No passado, deixei o país. Hoje, sinto que o país
é que está me deixando, dissolvendo-se numa bruma viscosa, tornando-se
irreconhecível.
Por
isso, quando um grupo gaúcho sugeriu a ideia de uma luta amada, disse
imediatamente que para mim caía como uma luva.
Durante
muitos anos, ao lado de outros, construímos uma legislação ambiental para
proteger nossos recursos naturais. Relatei, por exemplo, o projeto do Sistema
Nacional de Unidades de Conservação, conhecido como Snuc. Parece um nome de
cachorrinho, Snuc, mas encerra uma realidade de florestas, montanhas, rios e
manguezais que visito com frequência.
Quando
vejo que estão querendo desmontar a legislação, aproveitando-se do nosso foco
na pandemia, quando ouço que querem fazer uma boiada passar sobre a tenra grama
de nossa rede de proteção, sinto claramente que estão nos levando o Brasil.
Ao
saber que Bolsonaro decapitou a direção do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, o Iphan, apenas para atender ao dono da Havan, sinto um
calafrio. É um homem que vendia produtos chineses e tem uma cadeia de lojas com
uma cafona Estátua da Liberdade na porta.
O
Iphan foi dirigido por intelectuais como Rodrigo Melo Franco, Aloísio
Magalhães, e Bolsonaro escolheu agora a esposa de um dos seus seguranças, para
tomar conta de 1.300 bens materiais e 25 mil sítios arqueológicos. Foi barrado
pela Justiça Federal.
Bolsonaro
acha que nosso patrimônio se confunde com o que ele chama de cocô de índio
cristalizado.
Das
estátuas do Aleijadinho às pinturas rupestres da Serra da Capivara, é desse
rico conjunto que extraímos o sentido de identidade nacional e também postos de
trabalho para muita gente. Passam com uma boiada sobre os bens naturais e com
um bando de javalis sobre nossos bens culturais.
Pena
que os militares tenham embarcado nessa canoa. São potenciais interlocutores.
Conhecem bem o Brasil. O escorregadão geográfico do general Pazuello foi apenas
um acidente isolado.
Não
sei se os militares estão usando Bolsonaro como um bode na sala, para depois se
apresentarem como moderadores no pântano que ele criou. Ou se simplesmente se
deliciam com o acúmulo de soldos e salários como os militares da Venezuela.
Em
ambos os casos, estarão perdidos para sua tarefa maior, a defesa nacional. Não
importa quantos aparatos de guerra possam comprar, se não têm mais o respeito
do povo brasileiro.
De
que adianta entrar para o Ministério da Saúde e empilhar cadáveres com a
naturalidade com que pintam as árvores de branco?
Nossas
populações indígenas estão sendo dizimadas pela Covid-19, nossa juventude negra
massacrada pela opressão policial, nossas favelas organizam-se como podem para
substituir um governo ausente na pandemia, ausente em todos os tempos.
Só
não saímos às ruas porque o vírus tem sido implacável com os mais velhos. Por
mais que Bolsonaro arme seus aliados e os filhos lutem para trazer do exterior
novos brinquedos de morte, é preciso viver um pouco.
Na
verdade, é preciso cautela nas ruas, pois todos precisam estar vivos. Cada um
de nós que resiste é um pedaço do Brasil que pede socorro à humanidade, ao que
resta de humano na humanidade.
Nem
todos sabem como este país é grande, diverso, solidário, magnífico em sua
beleza. Impedir que se dissolva nas mãos de vendedores de bugigangas,
grileiros, racistas, incendiários é a grande tarefa de construir uma
civilização tropical onde querem apenas pasto, fuzis, asfalto, carros e
eletrodomésticos.
Como
não suprimir o “r” das lutas passadas e chamar isto de uma luta amada? Como não
compreender que todas as gerações pretéritas nos lembram de que o Brasil existe
para todo o sempre, e que reinventá-lo depende de nós?
Artigo
publicado no jornal O Globo em 15/06/2020
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