quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Cultura em Debate

Luís Brito Garcia: Identidade, cultura, hegemonia

A Personalidade é a soma do Temperamento e do Caráter que a ação social forja sobre um ser. Não há características psicológicas inatas que definam e distingam os grupos humanos.

Por Luís Britto Garcia, em Cubadebate


Reprodução
Obra do artista contemporâneo BanksyObra do artista contemporâneo Banksy
A identidade de um grupo social é o que os psicólogos denominam Personalidade Básica: a somatória do conjunto de necessidades, crenças, valores, atitudes, motivações e condutas imbuídos pela ação coletiva, compartilhados pela maioria de seus integrantes e que o distinguem de outros conjuntos humanos.

Assim, a Identidade é também um assunto cultural. Sem cultura, não há identidade. Somos em grande medida o legado de signos que nosso grupo nos transmite e que se confunde com nossa maneira de ser. Mas a Identidade é igualmente um assunto político. Aceitamos fazer parte de coletivos com os quais compartilhamos um sentido de pertencimento.

Maquiavel advertia que a tarefa de um Príncipe que conquistava Estados com religião, línguas e costumes distintos dos de suas outras possessões era tão difícil, que devia deixá-los conservar tais características e limitar-se a cobrar um tributo. Atribui-se a ele o ditado “divide e vencerás”, porque nada torna um Estado mais vulnerável do que a contraposição inconciliável de costumes, idiomas e crenças distintos. “Integra e perdurarás”, poderíamos acrescentar, no sentido de que a tarefa do estadista é pôr de manifesto e estimular aquilo que une a coletividade em vez do que a desintegra.

Cultura revolucionária
Cultura é a somatória das criações da humanidade. Estas ativam as forças produtivas, tecem as relações de produção e armam superestruturas ideológicas que mantêm estável um certo modo de produção. Mas dentro deste há forças inovadoras que erigem outra coisa nova: mobilizam novas forças produtivas, estabelecem originais relações de produção, produzem superestruturas inéditas, que destroem o caduco. Não há revolução sem cultura revolucionária. Em todas as épocas os universos da ciência, o direito, a filosofia, a estética, são expressões sensíveis da luta de um paradigma moribundo contra outro que nasce. Toda revolução lança sobre o mundo um dilúvio de temas, formas e estilos inéditos. A soviética, para mencionar apenas uma, criou o construtivismo, o abstracionismo, a linguagem do cinema, a arquitetura e a música modernas. Imaginemos as culturas do Reino da Liberdade.

Hegemonia cultural
Hegemonia é o poder de determinar condutas mais pela persuasão e o consenso do que pela repressão. Toda revolução é filha de uma hegemonia cultural nascente. O pensamento racionalista de Montesquieu, Voltaire e Rousseau predomina sobre o vetusto clericalismo do feudalismo e abre caminho às revoluções burguesas. Marx e Engels abrem o caminho a quase um século de predomínio planetário dos socialismos. Na Venezuela dos anos 1960, 1970 e 1980, a Esquerda Cultural exerce uma quase absoluta hegemonia na poesia, na narrativa, nas artes plásticas, no teatro, na cinematografia revolucionária, na música de protesto, no ensaio crítico, na interpretação materialista da História e no manejo da provocação.

Sob essa hegemonia cultural operam o auge de massas dos anos 1960 e a luta armada com a qual este se defende. Quase toda manifestação cultural importante é criada sob o signo revolucionário; nem uma só grande obra resume ou legitima o ideário da reação. A insurreição é derrotada nos aspectos militar e político, mas o substrato ideológico que construiu segue latente, influi nos levantamentos populares do Meridazo e Caracazo, e serve de marco para a rebelião militar de 1992 e a construção do bolivarianismo. No campo cultural, um dos mais decisivos, a esquerda tem uma hegemonia que pode decidir tudo.

Luís Brito Garcia é escritor e dramaturgo venezuelano, vencedor do Prêmio Casa de las Américas em 1969 e 1970.

Tradução de José Reinaldo Carvalho, do Vermelho


Nenhum comentário: