quinta-feira, 21 de maio de 2020

QUINTA EU CONTO

                                                         A PIPA


por Samuel Freitas

       Gostaria que não me transbordasse o restante que possuo de paciência. Disparou rispidamente Miguel de uma maneira não tão educada a sua pretensa alguma-coisa _Sempre essa repetição irritante sobre coisas já ditas e esquecidas. Já basta, não acha? 
   Era sempre assim que principiavam (ou terminavam) qualquer tipo de conversa. Seja discorrendo sobre política, filosofia, música, tempo… o colóquio entre ambos estava fadado à discussão. 
     Júlia não pretendia ser apenas um projeto de alguma coisa futura pro Miguel, desejava do fundo mais superficial da alma possui-lo como consorte.              -Difícil não transbordar o raso_ replicou Júlia de maneira formalizada. 
       Esse projeto de casal novelesco mexicano se conhecera da maneira mais singular possível: redes sociais. Essa alcova pública onde projetamos um Superego natimorto, informe e em decomposição. De maneira despretensiosa foram trocando carícias binárias (caro leitor, não nesse sentido aí), elogios fotogênicos, defesas de pensamento compartilhados e todas as dissimulações necessárias para o bom convívio nessa evoluída sociedade.
        _ Bom dia, minha Ninfa dos Elísios Campos.  
        _Buenos, Ogro do meu pântano.  
     _Vixe, que ela acordou deveras romântica. Como assim do seu pântano? Acordou, por um acaso, com diarreia?  
       _Credo! Tá justamente nesse seu palavrório toda a imundície já, seu Ogro.        _Já vai começar? Com um senso de humor desse não admira acordar em um pantanal. Avia, levanta e vai se limpar!
      Imaginem o diálogo daí por diante. Ela bradava queixas e exigia um respeito cortês. Ele simplesmente respondia com gargalhadas transmitidas como um epiléptico tendo crise ao teclado. E eram assim todo instante em que tentavam travar conhecimento.  
       _Júlia, tá melhor?  
       _O que foi agora?  
      Ei, é sério. Não aguento mais esse isolamento compulsório. Estou no limite de cometer uma loucura _ e vindo dele uma loucura podem imaginar que já está reservada a solitária num manicômio.  
      _ O que pretende então, oh senhor Insanidade? Sair correndo nu pela rua gritando que é a cura? Vai é pegar essa Peste e desfalecer num corredor de hospital ou, na melhor das opções, ser preso e levar uma surra da Vigilância da Saúde Ostensiva.  
     _Nada disso. Não vou comprometer minha reputação com obviedades tresloucadas. Eu serei grandioso, soberbo e revolucionário. Irei empinar uma pipa.  
       Júlia não podia se aguentar de tanto que riu ao ler essa extraordinária ideia. Teve leve convulsão que o diafragma lhe começou a arder com tal disparato. Coitadinho, não gira bem mesmo _ prescreveu conformada ela.  _               Estou a falar sério. Veja bem: estando em isolamento qual estamos, uma pipa surgiria como símbolo…  
         _Sim, traficantes que o diga. 
       _Eu disse símbolo, não sinal. Peste primeira da minha vida. Um simbolo que não só remete à liberdade como também a nossa infância, na inocência onde a pureza da própria liberdade nasce e habita.  
       _Pode até ser poético, Miguel. Mas quem irá compreender? Sequer olhar pro céu irão. Há coisas mais visuais na vida deles que o olhar pra uma infância que muitos nem chegaram a ter. Ainda mais em símbolo que desconhecem o significado, por mais que lhes seja explicado.  
     _Pois assim o farei. Uma pipa majestosa, colorida e com flâmula que cortejará até as aves do paraíso. Prepararei um carretel longo e empinarei rumo ao teto da abóboda celeste. Vai ver só!  
        _Uma epopeia de um ato só, isso que verei.  
       _Aí que se engana, ninfa pantanosa. Ela há de cair não obstante em outras mãos. E essa pessoa após contemplar o trabalho artesanal feito no artefato, encontrará em seu dorso uma frase que desnudará toda a esfinge contida em tão simplório objeto.  
      _Interessante, e o que seria esse axioma divino trazido pelas correntes no ar da liberdade? 
      _ Pode me devorar, querida, que não a revelarei. Lá se foi Miguel em sua jornada. Preso em casa e com todos os materiais necessários pra grande obra e com talento razoável sobrevivente das lembranças juvenis, começou seu legado à liberdade… Leitor amigo, não vou me estender em descrições da arte acreditando que já conhecem todo o processo da construção desse monumental empreendimento. Confesso que ficou assaz elegante, digna do regozijo do resoluto criador.  
      _Consegue ver daí?  
      _Onde você está com esse troço? 
    _No quintal estou, mas a pipa já contempla a beirada do planeta lá no horizonte distante.  
     _Tá louco, sabe que não pode tá aí fora. Vai pegar essa Peste maldita, que de tão terrível é bem capaz de corroer até a beleza dessa pipa erguida.                   _Tolices, não me demoro aqui. A liberdade tem pressa e ela já tomará voo sozinha rumo ao seu destino, solta, sem liames…  
      Realmente Miguel não se demorou ao relento. A Peste também não o demorara. Acometeu com uma violência tamanha dele, que aquele entusiasta meio louco, libertário e ranzinza bem humorado não suportou sua investida. Parecia mais que a vida, cansada de não viver também implorava por ser livre da prisão daquele corpo, já aprisionada. A Peste o colocou no último claustro terrestre, onde a igualdade é a única medida.  
       Nunca se sentira tão só e vazia. Desidratada de lágrimas, Júlia definhava junto com a alma. Ela perdera seu Ogro e agora sentia de verdade o que era um bioma alagado, úmido e estéril ao seu redor. Ela perdera o seu tudo, Júlia agora era um vácuo preenchido com o nada.  
       Meses depois e a cura da pandemia descoberta. A sensação de revolta era que tomava todo pensamento agora:  
       _Aquele miserável poderia ter esperado. Empinaríamos juntos aquela pipa imbecil agora tranquilos. Sem receios, filosofando sobre as coisas mais bobas que fossem. E em qualquer jardim seria sua ninfa querida e ele, meu paraíso.          Decidiu partir dali. Em todos os lugares, esquinas e ambientes as lembranças a traia e ela se abstraia a pensar no seu louco amado. Voltando à fazenda da família no interior talvez a fizesse recompor a existência. Os ambientes bucólicos parecem ter esse poder reconfortante com seus orvalhos, cheiro de terra molhada e crepúsculos que anunciam a nudez e beleza da Via Láctea.  
      Era de manhãzinha que tentando se acolher numa sombra fresca de cajueiro, Júlia decidiu descansar um pouco da caminhada. Ali aprontou repouso sobre as raízes e se recolheu. O sol insistia em abrir caminho entre as folhagens e galhos pra atingir como flechas de luz seu rosto avermelhado, rubor dos desacostumados. Depois de prestar continência aos focos que lhe cegavam, conseguiu avistar na copa aquilo que um dia fora o desvario do seu Ogro querido.  
      _Não pode ser! _ exclamou com olhos marejados não acreditando no achado. 
        Júlia buscou em seus instintos mais primitivos as devidas habilidades pra escalada. Os galhos frágeis eram ceras nas asas de Ícaro. E seu alvoroço descabido quase lhe custou o retorno ao desolado labirinto. Com ajuda dum cajado improvisado, estava afinal de posse do Símbolo caído. Era um terremoto só seus nervos, a epiderme em topografia uniforme se elevava, seu coração galopava sem sair do lugar, ela era toda uma mistura de saudade, emoção e alegria. Tateou a pipa como a um filho nunca tido, apreciava cada corte irregular, excesso de cola e emendas, trapos de pomposidade carnavalesca, com aquele ar complacente de quem admira Arte Moderna. A pipa estava um pouco maltratada pelas intempéries, com furos aqui e acolá, hastes em fissuras ou mesmo quebradas. Mas ainda carregava nessas feridas a altivez do que dantes tivera sido. 
      _Espera um pouco! Onde estará? _ Júlia lembrara da dita frase que aquele papagaio-correio trazia consigo no dorso, o que traria significado àquilo tudo afinal.  
      Não precisou muito se esforçar e lá estava subscrito em letras garrafais o que ansiosa havia procurado: PODE NÃO PARECER AGORA MAS UM DIA EU JÁ FUI LIVRE! 


  







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