terça-feira, 14 de julho de 2009

O Jogo da Amarelinha

Por Edezilton Martins
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O autor é Júlio Cortázar, argentino, publicado nos anos 60, editora Civilização Brasileira.
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É um livro de idéias sutis. Requer que o leitor seja um iniciado para que entenda sua sutileza. Pois alguns dos seus personagens são iniciados. Mas iniciados em que?... Esoterismo?... Não necessariamente. Pois o livro trata de outro tipo de iniciação: a iniciação que se conquista com o viver do dia-a-dia o qual vai moldando o homem, melhorando seu entendimento, tornando-o cada dia mais profundo e mais cético; cético de suas próprias idéias, do seu modo de perceber a si, o outro e o mundo. Por isso é um livro para pessoas maduras. Mas existem pessoas maduras?... O personagem Oliveira responde isto numa passagem do capítulo 39: ”A maturidade, supondo que tal coisa existisse, era, em última análise, uma hipocrisia. Nada estava maduro”.
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O livro nos ensina a colocar em discussão (xeque) as idéias que temos, o modo como entendemos a realidade e, sobretudo o outro. Obrigando-nos a respeitar as idiossincrasias. Leva-nos a este ponto apresentando o personagem Horácio Oliveira, o mais metafísico, como um homem diferente, posto que é o personagem com maior profundidade de entendimento, ao mesmo tempo em que o apresenta com um homem com muitos defeitos: egoísta, não gentil, mal sucedido financeiramente; levando o leitor a amar e odiá-lo, colocando o leitor em frente a um contraste e confusão de sentimento, fazendo-o pensar, obrigando-o a aceitar o personagem como ele é. O objetivo é levar o leitor a superar o seu modo de pensar a si mesmo e o outro.
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Para contrastar com a personagem Horácio Oliveira há a personagem Maga, par amoroso de Horácio. Maga à primeira vista parece ser a antítese de Horácio à medida em que tem dificuldade de acompanhar a profundidade do seu pensamento, embora a seu modo contemplativo seja uma personagem também profunda e instigante. Os dois mantêm um relacionamento sexual, e paira no ar uma coisa que os liga para além do sexo. Ao final Horácio e Maga são muito iguais e muito diferentes, como são todas as pessoas. É isto que o livro quer nos dizer.
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A leitura do “Jogo da Amarelinha” incomoda e encanta. O leitor inicialmente se identificará com um ou outro personagem, para no final perceber-se identificado com ambos; aceitando-os("os personagens") como eles são.
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Quanto ao jogo ao qual alude o título do livro: o jogo parece ser o modo como os homens através do aprimoramento das idéias, do ato de talhar a pedra bruta maçônica, etc atinge um estado de pedra filosofal (o céu do Jogo da Amarelinha) onde se atinge um sentido de absoluto e ceticismo. O livro exige que o leitor faça uma desconstrução, e uma reconstrução de todo seu saber, enquanto modo de entender as coisas, mundo e dogmas, ou do modo de ver-se a si mesmo e ao outro.
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Abaixo passagens do livro, geralmente reflexões do personagem Horário Oliveira ou do narrador:
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“A vida, como um comentário de outra coisa que não alcançamos e está aí ao alcance do salto que não demos.”
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“Um encontro casual era o menos casual em nossas vidas/ Andávamos por Paris sem nos procurarmos, mas sabendo sempre que andávamos para nos encontrar/Aquilo a que chamávamos o nosso amor era talvez eu estar de pé diante de você com uma flor amarela na mão, enquanto o tempo soprava contra nossos rostos uma lenta chuva de renúncias e de despedidas e passagens de metrô/Não creio que o vaga-lume extraia grande petulância do fato indiscutível de ser uma das maravilhas mais fenomenais deste circo e apesar disso, bastaria supor que ele tem uma consciência para compreender que, de cada vez que a sua barriguinha se acende, esse bicho de luz deve sentir qualquer coisa semelhante a uma cócega de privilégio/Maga era daquelas pessoas que fazem cair pontes só por atravessá-las.”
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“Nunca consegui resistir ao desejo de pedir que se aproximasse, sentindo-a curvar-se pouco a pouco sobre mim, desdobrar-se outra vez, depois de ter estado por um momento tão só e tão apaixonada diante da eternidade do seu corpo/O prazer era egoísta e nos encontrava gemendo no seu estreito objetivo/Sempre demasiado tarde, já que, ainda que fizéssemos amor muitas vezes, a felicidade tinha de ser outra coisa, algo talvez mais triste do que essa paz e esse prazer, um interminável na imobilidade/A Maga não sabia que meus beijos eram como olhos que começava a se abrir mais para além dela e que eu andava como alheado, derramado sobre outra figura do mundo, piloto vertiginoso numa proa negra que cortava a água do tempo e a negava/Por que eu não aceitava o que estava ocorrendo sem pretender explicá-lo, sem definir as noções de ordem e desordem, de liberdade e Rocamadour, como quem distribui jarros com gerânios, num pátio da calle cochabamba?”
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“Tudo é escrita, ou seja, fábula. Mas para que serve a verdade que tranqüiliza o honesto proprietário? A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, literatura/O que mais me revolta é a mania de explicações, o logos compreendido exclusivamente como verbo/Razões: cada um conviva com as suas, já que são falíveis do ponto de vista do outro/Entender o purê como uma epifania. DAMN THE LANGUAGE. Entender. Não “inteligir”. Entender. Uma suspeita de paraíso recuperável: não é possível que estejamos aqui para não poder ser/Em dado momento, surge sempre o endurecimento, a esclerose, a definição: negro ou branco, radical ou conservador, homossexual ou heterossexual, figurativo ou abstrato, San Lorenzo ou Boca Juniores, carne ou legumes, os negócios ou a poesia.”
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“Que inútil tarefa a do homem, barbeiro de si mesmo, repetindo à náusea o corte quinzenal, sentando-se a mesma mesa, refazendo as mesmas coisas, comprando o mesmo jornal, aplicando os mesmos princípios às mesmas conjecturas/O pior não é tanto estarmos sós, pois isto já é conhecido e nem tem solução/ E o tempo? Tudo recomeça, não existe um absoluto. O desejo a cada tantas horas, nunca demasiadamente diferente, e de cada vez, outra coisa: armadilha do tempo para criar as ilusões.”
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“Um amor como o fogo, ardor eternamente na contemplação do todo. Mas em seguida, cai-se numa linguagem desaforada/ Você caminha no espaço-tempo contínuo com uma lentidão de verme. Pense só em tudo o que já aconteceu desde que você decidiu ir buscar este ridículo chapéu de palha. Você tende a mover-se no contínuo, como dizem os físicos, enquanto eu sou sumamente sensível à descontinuidade vertiginosa da existência/ Que parâmetros tem você para pensar que fomos bem? Por que tivemos de inventar o Éden, viver sob a nostalgia do paraíso perdido, fabricar utopias, engendrar um futuro?/ O absurdo é acreditar que podemos apreender a totalidade daquilo que se nos constitui neste momento, ou em qualquer momento, e instruí-lo como algo coerente, algo aceitável, se você prefere. Cada vez que entramos numa crise, o absurdo se torna total/ A maturidade, supondo que tal coisa existisse, era, em última análise, uma hipocrisia. Nada estava maduro.”
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“O absoluto é aquele momento em que alguma coisa alcança a sua máxima profundidade, o seu máximo sentido, deixando então de ser interessante.”

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